Cientifismo no debate sobre a emigração para o Brasil: relatos de escritores italianos

Na interface de pesquisa que vem sendo desenvolvida sobre imigração italiana no Brasil, emergem questões relacionadas à saúde e à higiene como categorias de destaque, a partir de um corpus documental constituído por relatos de viajantes. Tais fontes revelam-se sempre férteis, considerando uma vasta gama de questionamentos hoje possíveis de serem feitos ao passado. Tratando-se da historiografia brasileira, os relatos de viajantes italianos são pouco utilizados ou mesmo inéditos e, no presente texto, são analisados alguns desses relatos de italianos sobre o Brasil, publicados na última década do século XIX, quando os países sul-americanos disputavam imigrantes europeus.

Nas últimas décadas do século XIX, a descrição das enfermidades ultrapassou a simples etiologia. Essas enfermidades passaram também a ser analisadas na sua dimensão social isto é, na maneira como certas epidemias avançam, em decorrência de determinados usos e costumes referentes à higiene privada, às carências alimentares, às práticas sociais. Pesquisas e tratados acerca de doenças e de terapias foram incontáveis durante todo o decorrer do mesmo século, à medida que os médicos convertiam a higiene em ciência.

Como ponto de partida, interessa esclarecer o estatuto dessa higiene e aquele dos médicos. A saúde passara a ser confundida com o poder sobre o corpo que precisava ser forte e vigoroso. Em outras palavras, o corpo estaria a serviço de uma vida longa e proveitosa, era avaliado de fora, e não em si mesmo; a debilidade física era o campo propício à doença, entendida como fraqueza do sangue e dos órgãos. Os administradores, políticos e educadores apregoavam as vantagens da limpeza, da saúde, da ordem e da moral. Nesta verdadeira cruzada, o papel do médico foi de fundamental importância e seu poder tornou-se incontestável. Ataram-se os nós entre este poder médico e a ordem social estabelecida e o autorizado saber médico entendia os setores populares como focos de todas as enfermidades.

O higienismo predominante no final do século XIX foi uma das mais brilhantes estratégias de controle social que se tem notícia, capaz de impulsionar a modernização da sociedade. Daí o reconhecimento do exercício do poder sobre os marginalizados, loucos, mulheres e pobres, como registra Barrán.[1] Pobres eram os imigrantes e poderosos foram os médicos que se manifestaram sobre o fenômeno da emigração, muitas vezes a serviço de países americanos na captação de imigrantes. Não é de admirar, portanto, que médicos italianos tenham escrito sobre o Brasil, implícita ou explicitamente desaconselhando a emigração para o país. É o caso de Paolo Mantegazza, Alfonso Lomonaco e Luigi Buscaglione[2].

Paolo Mantegazza nasceu em Monza no ano de 1831. Diplomou-se em Medicina e viajou muito ao exterior, tornando-se célebre higienista. Ensinou na Universidade e no Instituto de Estudos Superiores de Florença; foi autor da Enciclopedia Popolare, publicada nesta cidade em 1876, e do Almanaco Igienico Popolare, publicado em 1870. Além de professor universitário, foi deputado e senador.[3] Seu relato de viagem, publicado em 1867, resultou da experiência de quatro anos como médico na Argentina.

Na obra consultada escreve que, ao retornar da Bolívia, deixando para trás Buenos Aires e Montevidéu, avistara o perfil da “magnífica costa brasileira”, antes de ingressar na baía de Guanabara[4]. Viajava com sua jovem esposa em navio de bandeira inglesa, que recebeu saudação dos canhões da fortaleza localizada ao ingresso da baía.

Desembarcou e, para alcançar o cais, foi conduzido por canoa remada por dois negros; várias vezes tentou perguntar se havia febre amarela no Rio de Janeiro. Respondem laconicamente: “os mortos são poucos e a epidemia recém começa”. Entretanto, observou que havia muitas embarcações com bandeiras a meio-pau, assim como um vaporzinho negro, com bandeira amarela que, com agilidade, recolhia os doentes e mortos para levá-los à Santa Casa de Misericórdia. Na mesma tarde pode ler nos jornais sobre os mortos daquele dia no Rio, quase todos estrangeiros, principalmente russos, escandinavos e alemães.

A seguir soube que havia febre amarela também no vapor em que viajava. Mesmo assim, preferiu reembarcar com a mulher no mesmo vapor, a permanecer por um mês no Brasil, país que chamou “esconjurado” pela doença. Registrou que zarparam às pressas, deixando o porto com 30 doentes a bordo; logo depois seriam 40, isolados no próprio navio.

No prefácio de sua publicação, Lomonaco trata de apresentá-la como “resultado de notas, lembranças e impressões de viagem, além de pesquisa histórica e estudos de vários gêneros”, realizada durante a sua permanência no Brasil[5]. Desejou descrever a vida e a civilização do país e pode-se inferir que expõe razoáveis informações sobre o Brasil. O título de doutor está registrado junto ao seu nome e Lomonaco detém conhecimentos médicos da época, especialmente no que diz respeito à higiene e à nutrição. Esclarece ter procurado dar aos leitores uma idéia das localidades percorridas, dos usos e costumes, das características mais salientes da sociedade brasileira.

Muitas páginas são dedicadas por Lomonaco aos deploráveiscostumes e ao que considera anomalias sociais do Brasil, destacando os hábitos alimentares. Escrevei que, no país “[…]as manifestações da vida são mesquinhas e limitadas”, em decorrência do regime alimentar frugal e indigesto, acrescentando que poucos estômagos poderiam tolerar a feijoada e o virado, mistura de feijão preto, cebola e banha de porco; discute também o hábito de proferir discursos em banquetes, que acabam com o bom humor e dificultam a digestão. Conclui que a alimentação, rica em hidrocarbonatos e em gordura, resulta na preguiça que, por sua vez, é decorrente da fartura do país que produz feijão e arroz em quantidade, inibindo a diversificação alimentar.

Dentre muitas outras observações indignadas, o autor refere àpromiscuidade sexual e à convivência doméstica entre filhos legítimos e ilegítimos, às vezes mulatos; refere-se também com freqüência ao ócio, à inexistência de conversação inteligente. As mulheres não recebemde Lomonaco qualquer consideração; diz que são freqüentemente desdentadas; exibindo elaboradas cabeleiras como se fossem bacantes saindo dos bosques; triste, monótona e indolente seriam suas vidas; cedo casavam e cedo envelheciam.

Lomonaco faz insistentes observações sobre a insalubridade da capital brasileira, onde todas as ruas são estreitíssimas, mal pavimentadas e sem calçada, imundas perto do porto. Ali as casas são velhas, baixas, emendadas umas às outras sem nenhum verde no meio; construções inadequadas, pois há morros impedindo a circulação do ar. Registra que há áreas residenciais novas, mais distantes do Centro, com ruas mais largas melhor calçadas e com passeios espaçosos; são bairros arborizados, cujos prédios têm melhor aparência, sendo muitos circundados por jardins. Mas ressalta que também ali a higiene não é respeitada, pois nas proximidades encontra-se abandonado Canal do Mangue, pelo qual correm imundícies, inclusive resíduos do gasômetro; diz que operários pretendem limpar o canal, cometendo a imprudência de retirar do fundo sedimentos que ficam acumulados na rua, à vista dos passantes.

Contando que, no Centro do Rio de Janeiro, há numerosas e sujas casas de negócio, envolvidas em cheiro nauseabundo, Lomonaco continua conferindo ao Rio o aspecto de cidade oriental, suja, mal-cheirosa. Enfim, uma cidade pestilencial, onde havia o maior calor do mundo, só interrompido por verdadeiros dilúvios que deixavam poças a exigir esforços ginásticos dos passantes.

Outros hábitos dos brasileiros são comentados por Lomonaco que garante serem os mesmos apaixonados pelo jogo da loteria, fumarem muitíssimo e passarem a maior parte do tempo em casa, na ociosidade, recebendo visitas. Daí o comportamento indolente, o organismo debilitado, a repugnância ao trabalho e atração pela posição horizontal, mesmo nas classes baixas.

Luigi Buscaglione, médico de bordo do vapor Carlo Raggio, enfrentou uma devastadora epidemia de cólera. Partiu de Gênova em 1893 transportando imigrantes italianos para o Brasil[6]. Nasceu em 1863, formou-se em medicina, cirurgia e ciências naturais. No ano em que empreendeu aquela que chamou a “desastrosa travessia”, já era professor suplente na Universidade de Turim[7].

Na sua narrativa registra que se despediu do Piemonte em 1893,a tempo de assistir a chegadaem Genova docarvoeiro Carlo R.,proveniente de Manchester,transformadoem navioparaemigrantes a caminho do Brasil. Pouco tempo depois de zarpar constata o cholera morbus a bordo, mas a viagem prosseguiu e, depois dalinha do Equador, o contágio estava difundido. Não havia mais lugares na enfermaria, o número de mortos aumentava em proporção vertiginosa e Buscaglione narra cenas de horror.

Diz que, no percurso realizado, o navio semeou uma rota de cadáveres, com 102 corpos jogados ao mar. Por algum tempo os corpos jaziamna cobertaenvoltos em colchões,ao lado de doentes em agonia; todos os tratamentos possíveis foram ministrados a bordo, sem que houvesse satisfatórios resultados.Detém-senas enormes dificuldades que enfrentou a bordo, com os muitos passageiros e muitos enfermos em exíguo espaço, dificultando uma desinfecção rigorosa.

Mas a viagem prosseguiu eo Carlo R. aproximou-se da costa do Rio de Janeiro, onde foi impedido de ancorar e efetuar o desembarque dos passageiros. Passaram-se dias sem qualquer comunicado, até que uma barca se aproxima para anunciar a decisão de expulsar o vapor de águas brasileiras, prometendofornecer os víveres e medicamentos necessários à travessia de retorno. Buscaglione tentou explicar às autoridades que o ciclo do cólera estava encerrado e que os passageiros sobreviventes encontravam-se imunizados. Mas nada mudou a decisão tomada. Depois de mais quatro dias fundeados,a tripulação do Carlo R. recebeu os víveres prometidos e medicamentosque não correspondiam aos solicitados.O vapor então abandonou a costa do Rio de Janeiro, onde morreram mais quarenta passageiros. Um cruzador-de-guerra brasileiro deu escolta até além do Cabo Frio, porque as autoridades brasileiras temiam tentativas de desembarque.

Buscaglione considera semi-bárbara a ação do governo brasileiro, através dos seus representantes sanitários. Manifesta-se escrevendo que não pode uma nação civilizada recusar-se a acolher cerca de mil emigrantes só porque estão sendo dizimados por doença infecciosa. Os encarregados do governo teriam demonstrado um medo pueril, nem mesmo chegando perto do navio a fim de estabelecer comunicação com o pessoal de bordo. Esclarece que argumentou, lembrando que o vibrião do cólera não durava muito e que os passageiros já estavam imunizados. Mas os médicos recusaram-se a ceder as dependências do lazareto para os doentes. Conclui que a civilização brasileira permanecia no medievo.

No amplo debate que acompanhou a emigração italiana em massa, nas duas últimas décadas do século XIX, a palavra impressa desses médicos alcançava repercussão contrária ao Brasil. É provável que seus textos refletissem nos livros dos chamados publicistas, ou jornalistas, que usam argumentos relacionados à higiene e à saúde para desaconselhar a imigração para o Brasil. Além do mais, é preciso lembrar que Lomonaco manteve relações estreitas com a imprensa brasileira, onde colaborou; outros exemplos conhecidos desses jornalistas muito atuantes na imprensa e cujos livros alcançaram enorme repercussão foram Ferrucio Macola[8] e Ubaldo Moriconi[9], publicados em 1894 e 1897, respectivamente. Da análise de conteúdo do corpus documental constituído a partir de seus escritos, emergem duas categorias principais relacionadas à higiene: características do Rio de Janeiro; os usos e costumes dos brasileiros.

A cidade do Rio de Janeiro é o cartão postal do Brasil e a beleza da baía de Guanabara foi exaustivamente elogiada. Edmondo de Amicis tratou de descrevê-la, em páginas que alcançaram milhões de leitores[10]. Não foi o primeiro nem seria o último viajante italiano a revelar-se extasiado diante da baía, mas foi referência entre patrícios, emocionados pela sua descrição em Sull’Oceano, livro lançado em 1886.Muitos viajantes italianos, como Ernesto Rossi, Palma de Cesnola, Graffagni, Sandri ou Enrico Serra também despenderam esforços e obtiveram diferentes resultados, traduzindo a impressionante paisagem. Ferrucio Macola emprega a metáfora do encanto para descrever a baía como lugar capaz de atrair viajantes, mas capaz também de enganá-los: “disseram e é verdade que a chegada no Rio de Janeiro é o espetáculo mais belo do mundo; [… ] acontece que, às vezes, no baile de máscaras, descobre-se embaixo do belo corpete de talhe elegante, do pequeno e bem calçado pé, dos macios cabelos e dos olhos negros, entre outras coisas, um rosto envelhecido e uma careta como sorriso”[11].

A mesma sensação de desgosto seria aquela a impor-se ao estrangeiro quando colocava o pé em terra firme no Rio. Deixando a beleza para trás, Macola descreve a cidade em palavras pouco lisonjeiras, assim como descreve de forma negativa os brasileiros em geral. Não acredita que o Rio de Janeiro fosse comparável às capitais européias.Revela seu eurocentrismo ao afirmar que, nessa cidade velha e feia, os europeus conseguiram criar uma cidade idílica fora do Centro, nos subúrbios de Botafogo e Tijuca, com vilas e jardins.Quanto à famosa Rua do Ouvidor, acredita que exercia a função do Corso em Roma, da Via Toledo em Napoli ou da Galleria em Veneza. Ainda que o calçamento fosse deplorável, as construções horríveis, as lojas sujas.

Ubaldo Moriconi é tambémimpiedoso no livro que publicou em 1897: Nel Paese de “macacchi”,título por demais sugestivo. O Rio de Janeiro, cartão postal do Brasil, não passaria de uma imensa praça comercial; no Centro transitavam longas filas de veículos carregados de mercadorias que, com freqüência, afundavam no calçamento esburacado. Observa essa atividade febril, desenvolvida em “clima homicida”, com temperatura que alcançava 40 graus à sombra. A Rua do Ouvidor seria considerada pelos brasileiros, pretensiosamente, como o parisiense Boulevard des Italiens ou como a Galleria, em Nápoles. Escreve: “É necessária toda a boa vontade e a indulgência de um estrangeiro para elevar aquele beco à denominação de rua. Trata-se de uma passagem mesquinha… sem calçada, sem árvores”[12]. Sua opinião sobre as mulheres é também negativa. Considera a mulher “ legítima” brasileira uma pessoa inerte, além de qualificá-la como resignada, ociosa, apática, inconstante, superficial e mal-educada. Não podia compará-la à mulher italiana, “guardiã inteligente e vigilante” da família[13].

Registra aquilo que seriam maus costumes dos brasileiros: em plena Rua do Ouvidor, são comuns as discussões em voz alta, de homens encasacados de preto que gesticulam. Para ele, os cariocas em geral eram indolentes, apesar de afáveis e o Brasil era o campeão de títulos pomposos, com seus doutores, comendadores, condes e barões. Jornalista, detém-se nos comentários sobre a imprensa brasileira que considera a mais virulenta do mundo.

Sobre o caráter do homem brasileiro viu-se que sua opinião não é lisonjeira. Esse mau caráter dos brasileiros seria explicável pelo ambiente viciado, clima insalubre, sujeira das casas, corrupção de hábitos, má educação e indisciplina. Por tudo isso e ainda sendo anêmico, o brasileiro é extraordinariamente nervoso, passando rapidamente da calma à excitação. Ama os longos discursos: nos teatros, nos banquetes, na escola, no cemitério, na igreja. Nos teatros, quando há espetáculo beneficente, ouve-se cerca de uma dúzia de discursos. Quando morre alguém, lágrimas copiosas são versadas durante o discurso que decanta as qualidades do morto.

Moriconi destaca a importância da alimentação para a formação do caráter e para o destino de um povo. Considera primitiva a dieta alimentar: “É preciso ver com que orgulho patriótico as pálidas e esbeltas mocinhas da nobreza devoram a infalível feijoada, uma mistura nojenta […] que rebelaria até mesmo as galinhas”. Lembra que, não digerindo bem os alimentos por falta de dentes, um bom sangue deixava de ser produzido e isso influía no caráter dos brasileiros.

Discorre sobre a ignorância em que eram mantidas as “classes pobres”, sobre o vício da embriaguez disseminado, a insalubridade de suas habitações, inspiradas no “pré-histórico” sistema de construção dos portugueses. Discorre sobre os costumesgeneralizados de gastar sempre além dos próprios meios e de jogar. Povo composto de parvenus, dos brasileiros seriapróprio aparentar, imitando canhestramente tudo o que os outros povos fazem. Detém-se no assunto que parece melhor conhecer a imprensa. No capítulo correspondente, é capaz de revelar excepcional veia cômica ao lembrar as seções dos jornais como indicadores do povo leitor. Descrevendo um “país de macacos”, também descreve um país de alienados, ressaltando a indiferença com que o regime republicano, recém estabelecido, fora recebido pelos brasileiros.

Os autores transitam pelo Brasil nas últimas duas décadas do século XIX, quando a imigração já era fenômeno corrente. A população de imigrantes aumentava, metade docontingentededicava-se à agricultura e a outra metade dedicava-se ao pequeno comércio, à manufatura ou a atividades menos prestigiadas nas cidades. Somente no Rio havia cerca de 25 mil italianos, na maior parte naturais da Calábria, segundo registra Moriconi.

Os primeiros tempos da república brasileira revelar-se-ão ainda mais atraentes para os que desejavam emigrar. Acontecia um rápido aumento do número de italianos no Rio de Janeiro, além de diversificar-se a composição étnica e ocupacional da população. Shalhoub afirma que a marginalização dos trabalhadores negros naquela cidade ocorreu, em parte, porque os imigrantes ocuparam os postos de trabalho nos setores mais dinâmicos[14].

Antes que findasse o século XIX, a coletividade italiana no Rio era numerosa e representativa. A mão-de-obra especializada tornava-se premente diante da transformação urbana que se verificava na capital brasileira. O surto de empresas imobiliárias, por exemplo, reforçava a evidência do crescimento acelerado da cidade pelo número de edificações, segundo Diegues Júnior [15].

Os autores analisados transitaram pelo Brasil no final do século XIX, quando a imigração já era fenômeno corrente e a população de imigrantes aumentava no campo e na cidade. Nas principais cidades, a coletividade italiana nas principais cidades brasileiras era numerosa e representativa e,entre 1887 e 1902, 60% dos imigrantes recebidos no Brasil eram italianos.

As três províncias meridionais e o Espírito Santo atraíam milhares de imigrantes para áreas desocupadas; Maria Thereza Petrone assinala que, em diferentes áreas e com funções distintas, “a experiência do imigrante foi diferente, sucessos e insucessos têm outros fundamentos”[16]. Tanto que outras narrativas vão sendo publicadas, destacando as experiências colonizadoras, iniciadas na década de 1870, e que já evidenciam êxito em várias regiões do país. Antes que a predominância dos discursos positivos à imigração italiana ocorresse, são muitos os indícios positivos à essa imigração no sul do Brasil.

O principal debate no Brasil sobre a imigração, no período imperial, esteve polarizado entre a imigração e a colonização. O governo obteve o controle do processo, a partir da promulgação da Lei de Terras, em 1850, que legalizou e legitimou terras, além de empregar recursos na introdução de imigrantes, como sublinham Giron e Bergamaschi. As autoras também lembram que a referida lei, de número 601, criava obstáculos à entrada de imigrantes, já que impedia a doação de terras pelo Estado. Conseqüentemente, criava empecilhos à colonização que, pouco a pouco, passou prioritariamente à iniciativa privada, considerando-se que a terra tornara-se mercadoria e que sua venda alcançava lucros[17].

Sabe-se que, desde 1848, a lei imperial número 514 concedera terras devolutas às províncias, para colonização. Mas, na prática, a falta de recursos governamentais nessas províncias levou os governos a se associarem à iniciativa privada, estimulando as atividades das companhias de colonização e atendendo com mais intensidade os interesses regionais. A elite paulista acabou sendo a principal beneficiada; ingressaram enormes contingentes de imigrantes para São Paulo, atendendo principalmente a demanda de mão-de-obra, enquanto estreitavam-se as possibilidades de acesso à propriedade da terra. Contudo, alguns núcleos coloniais precisaram ser criados na Província de São Paulo, para atrair imigrantes, acenando-se “[…] com a possibilidade de se tornarem pequenos proprietários depois de um estágio na fazenda de café”, conforme escreve Petrone [18].

No Rio Grande do Sul apresentaram-se outras circunstâncias para a imigração, visto que eram outras as necessidades regionais. A política do governo provincial caracterizou-se por desenvolver estratégias para a fixação dos estrangeiros à terra, com o objetivo de formar colônias que produzissem alimentos para a subsistência. Lando e Barros registram que tais colônias foram localizadas nas proximidades de algum centro urbano, “ mas suficientemente distantes das áreas da grande propriedade, de modo a não representar uma ameaça à sua hegemonia política e econômica”[19].

Sabe-se que a liberdade para emigrar sempre vigorouna Itália, enquanto outros países faziam restrições ao Brasil. Essa plena liberdade foi ratificada pela classe dirigente italiana com a lei de 1888 que vigorou até o alvorecer do século XX. Assinala Trento que, até 1901, seria a única norma a reger a emigração; naquele ano houve a promulgação de outra lei que pretendia regulamentar a atividade dos agentes, criando o Comissariado da Emigração. Dessa forma, os governantes italianos livraram-se do excedente populacional e, durante muito tempo, continuaram a ver nos imigrantes súditos de segunda categoria. Mostravam pouquíssimo interesse pela sorte dos compatriotas no Brasil, apesar das contínuas e alarmantes denúncias que se intensificaram desde a metade da década de 1880, principalmente relacionadas às condições dos imigrantes nas fazendas paulistas de café. Tal liberdade continuou vigorando e o governo limitou-se a duas breves suspensões da saída de emigrantes para o Brasil,em decorrência da epidemia de febre amarela entre março de 1889 e julho de 1891; de setembro de 1893 a maio de 94, em conseqüência da guerra civil no Rio Grande do Sul. Só em 1902 a imigração subsidiada seria proibida pelo decreto Prinetti, justamente no período em que os Estados Unidos demonstravam poder absorver grandes quotas da mão-de-obra italiana. A partir daí a emigração para o Brasil sofreria uma sensível queda, coincidindo com a crise da superprodução de café.

De qualquer forma, é preciso assinalar que as três províncias meridionais e o Espírito Santo, além de São Paulo, atraíram milhares de imigrantes para áreas desocupadas, em geral oriundos da Itália setentrional. Afinal, a prática de fornecer passagens gratuitas aos imigrantes continuou vigorando. Assinala Franzina que, apesar das estatísticas serem reticentes nos últimos anos sucessivos a 1887, muitas outras fontes apontam para tal prática exercida pelas agências de emigração e pelas companhias de navegação. O mesmo autor referencia Macola quando afirma sobre a índole dócil dos colonos vênetos[20].

A fama dos vênetos e trentinos, como fortes e incansáveis trabalhadores agrícolas muito cedo alcança o Brasil. Petrone aponta, como objetivo das elites locais, o estabelecimento de um “campesinato” nos moldes europeus, para a formação de uma classe média. Por isso a afirma que, enviados para diferentes regiões e para desempenhar diferentes funções, as experiências dos imigrantes foram outras no sul do Brasil[21]. Tais diferenças não seriam levadas em conta pelos autores italianos analisados, que focalizam a narrativa nos estereótipos paulistas, pois seus textos têm precisas motivações; suas lentes têm filtros particulares de observação que influenciam narrativas.

No prefácio de sua publicação, Lomonaco esclarece ter procurado dar uma idéia das características mais salientes da sociedade brasileira. Distingue três categorias de imigrantes italianos no Brasil: os colonos, isto é, dos que trabalham na agricultura, seja através de iniciativas do governo, com acesso a lotes de terra, ou seja, a serviço dos fazendeiros, como trabalhadores assalariados; os operários, artesãos e profissionais de várias espécies, inclusive liberais; a categoria constituída por gente que não tem ocupação fixa ou qualquer tipo de recurso financeiro. Aos últimos, os brasileiros chamariam com escárnio de carcamanos, expressão que encerra o que há de mais baixo e degradante, como se fossem seres desprezíveis, como se fossem esfomeados, mendigos. Haveria no Brasil graves preconceitos contra os italianos, a ponto de considerar-lhes, no conjunto dos imigrantes, seres inferiores. Lomonaco afirma que é espetáculo comuníssimo ver seus conterrâneos exercendo os mais humildes e fatigantes ofícios, rejeitados até mesmo por negros e mulatos, vivendo no meio de dificuldades e privações. Ainda detém-se no problema da falta de união entre os italianos, das discórdias e inimizades, especialmente nas cidades maiores, onde os integrantes da “colônia” se dividem em várias facções, reagrupados em torno de chefetes. Escreve que, se no Brasil houvesse um pouco mais de dignidade ou senso moral, as pessoas ficariam edificadas diante do horrendo espetáculo que oferecia a colônia italiana. E arremata dizendo que, em suma, a influência do meio é perniciosa sobre a índole do imigrante italiano; que muitas coisas deploráveis deixariam de acontecer se o “teatro” dessa imigração não fosse o Brasil[22].

O autor dedica um capítulo inteiro da obra às doenças do Brasil e o último capítulo trata da imigração italiana no país, com três itens: a escravidão, as iniciativas do governo relacionadas à imigração estrangeira e, por fim, a imigração italiana propriamente dita. Taxativamente, Alfonso Lomonaco desaconselha a imigração para o Brasil, quando explora ao máximo aspectos negativos observados no Brasil. Cattarulla enfatiza esse posicionamento ao destacar as considerações finais do livro “Al Brasile”, quando Lomonaco escreve que recomendar a imigração para o Brasil é desonesto e antipatriótico, pois o governo brasileiro não tem capacidade de organizar tal imigração e o povo é, em geral, hostil aos estrangeiros. A autora conclui que, tendo viajado entre 1885 e 86, pouco antes da Lei Áurea, o Doutor entendeu que, no Brasil, a imigração deveria apenas substituir o braço escravo que já era escasso [23].

Do conde vêneto Ferrucio Macola, sabe-se que foi jornalista e político. Publicou vários livros entre 1884 e 1894 e, antes disso, viajou para o Brasil, já na condição de deputado, a fim de estudar possibilidades à imigração[24]. Critica de forma contundente os governos italiano e brasileiro; admite a imigração, mas pretende que seja efetivamente organizada, uma vez que não havia uma política definida para a América do Sul, por parte do governo italiano. Camilla Cattarulla assinala a ênfase colocada por Macola nas acusações ao governo italiano, por não ser capaz de organizar esta emigração, desperdiçando chances para uma futura expansão colonial[25].

Ubaldo Moriconi esclarece que, em 1889, havia viajado no navio Orénoque, de Buenos Aires ao Rio de Janeiro. Cattarulla cita outra obra deste autor, cujo título dá indicações: Da Genova ai deserti dei Mayas: ricordi di un viaggio comerciale. A viagem comercial, então, estava sendo a alternativa encontrada para substituir o fracassado expansionismo na África, estimulando o consumo de produtos italianos pelos imigrantes. O autor tem no comércio a motivação para sua viagem à América do Sul, pois o movimento comercial italiano no exterior não correspondia ao aumento dos fluxos imigratórios.A má impressão que levou consigo ao partir do Brasil, certamente, foi influenciada por situações difíceis que precisou enfrentar. Além de perder, “uma pessoa querida”, durante a epidemia de febre amarela, em 1894, envolveu-se em polêmicas jornalísticas. Atuou no Brasil em periódicos italianos que representavam diversas facções da coletividade e, através de suas páginas, travou memoráveis batalhas verbais. Conforme Cattarulla, ao generalizar sobre as condições negativas do Brasil à imigração, assim como àquelas da Argentina, recomenda a imigração para os países da América Central, onde poderiam ser abertos novos mercados, ainda inexplorados à atividade industrial, agrícola e comercial. Sugere ainda que emigrassem representantes das camadas sociais médias e altas, para que fosse possível criar uma classe comercial e empresarial italiana fora da Itália[26].

Naquela virada para o século XX já se desenvolvia uma estratégia diplomática no sentido de valorizar e cooptar lideranças e imigrantes bem sucedidos, mas é nos imigrantes pobres e maltratados que se detém os autores em questão. Suas narrativas enfatizam a miséria, as epidemias, os maus tratos recebidos pelos imigrantes, as más condições de viagem, de hospedagem e de trabalho no Brasil. São autores reconhecidos pela virulência como atacam a emigração para o Brasil, refletindo fração do debate que se verificava na Itália sobre a imigração, onde a corrente favorável, entretanto, sempre obteve maiores vantagens.

As condições insalubres do Rio de Janeiro foram enfatizadas pelos italianos que descreveram a cidade no final século XIX. Mas, a par deste conteúdo manifesto, há um conteúdo latente no realce dado a aspectos negativos. Além de esboçarem caprichosamente uma cidade “pestilenta”, onde o calor abrasa e a umidade sufoca, comentam a escassez de equipamentos urbanos e de espaços “civilizados” para as sociabilidades públicas, ironizando o que seria uma deficiente vida cultural.

No Rio de Janeiro está a vitrine do Brasil. Os brasileiros que ali transitam são ignorantes, jogadores costumeiros, imorais, preguiçosos, promíscuos, corruptos, vaidosos, irresponsáveis, perdulários e, ademais, alimentam-se de modo deplorável. Suas mulheres são ainda mais ignorantes, além de indolentes, gulosas, desdentadas, mal vestidas, incompetentes como donas de casa e mães, além de tocarem sofrivelmente o piano. Enfim, os brasileiros são representantes de uma raça inferior.

Como a maioria dos italianos que descreveram o Rio no período, manifestam má impressão sobre o Centro da cidade, com ruas estreitas, imundas e casas amontoadas, abafadas, ainda que reconhecessem a salubridade dos subúrbios que, de alguma forma, alinhavam-se às concepções higienistas e estéticas em vigor. Omitem que a cidade vinha recebendo melhoramentos que atendiam a essa retórica da higiene, ainda que o imaginário da cidade italiana também se apresentasse bem distante da realidade, como no Brasil.

Para os escritores citados, os brasileiros seriam indivíduos que humilhavam e hostilizavam os imigrantes, negando-lhes razoáveis condições de trabalho no seu país onde o mal prospera; esta é a leitura explícita do texto dos autores que, em muitos assuntos parecem repetir-se e que serão posteriormente repetidos. Usam com freqüência as palavras de médicos e, ao escreveram sobre questões de saúde relacionadas ao Brasil, procuram enfatizar questões relativas à saúde para justificar seus pontos de vista negativos quanto à emigração para o Brasil.

Em descrições que ridicularizam o Brasil e os brasileiros, usam acentuadamente conhecimentos médicos, enfatizando a narrativa das epidemias de febre-amarela e do cólera. A insalubridade do país é descrita através dos princípios de higiene então consagrados e os brasileiros são definidos como representantes de uma raça inferior, habitantes de um país bárbaro, onde a autoridade era corrompida e onde os imigrantes não alcançariam jamais uma cidadania.

 

[1]           Jose Pedro Barran, Medicina y Sociedad en el Uruguay del Novecientos: la ortopedia de los pobres, Montevidéu, Ed. de la Banda Oriental, 1995, p.16.

 

[2]           Núncia Santoro de Constantino, Os males e os maus: desvãos de textos sobre a emigração italiana para o Brasil, “Métis: história & cultura”, 4, 8 (2005), pp. 11-35.

 

[3]           Enciclopedia biografica e bibliografica italiana. Ministri, Deputati, Senatori, Milano, E.B.B.I, 1940, sub vocem.

 

[4]           Paolo Mantegazza, Rio de La Plata e Tenerife, Milano, Gaetano Brigola Editore, 1870.

 

[5]           Alfonso Lomonaco,Al Brasile, Milano, Società Editrice Libraria, 1890.

 

[6]           Luigi Buscaglione, La disastrosa traversata del Carlo R: note di viaggio del medico di bordo Dott.Luigi Buscaglione – Libero docente nella R. Università di Torino, Torino, Carlo Clausen, 1894.

 

[7]           Dizionario Bibliografico degli Italiani, Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana, 1972, sub vocem.

 

[8]           Ferruccio Macola, L’Europa alla conquista dell’America Latina, Venezia, Ferdinando Ongania Editore, 1894.

 

[9]           Ubaldo Moriconi, Nel Paese de “macacchi”, Torino, Roux Frassati e Co. Editori, 1897.

 

[10]          Edmondo De Amicis, Sull’Oceano, Milano, Treves, 1889.

 

[11]          U. Moriconi, Nel Paese de “macacchi”, pp. 228-229.

 

[12]          Ibid., pp. 50-52.

 

[13]          Ibid., pp. 188-190.

 

[14]          Sidney Chalhoub, Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque, São Paulo, Brasiliense, 1986. pp. 35-43.

 

[15]          Manuel Diégues Juniro, Imigração, Urbanização e Industrialização, Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos/MEC, 1964, p. 198.

 

[16]          Maria Theresa Petrone, O imigrante italiano na fazenda de café em São Paulo, inA presença Italiana no Brasil, org. Luis A. De Boni, Porto Alegre: EST, 1987, pp. 102-103.

 

[17]          Loraine Slomp Giron e Heloisa Eberle Bergamaschi, Colônia; um conceito controverso, Caxias, Editora da Universidade de Caxias do Sul, 1996, pp. 25-28.

 

[18]          Maria Theresa Petrone, Política Imigratória e Interesses Econômicos (1824-1930), in Emigrazioni europee e popolo brasiliano. Atti del Congresso euro-brasiliano sulle migrazioni, Roma, CSER, 1987, pp. 262-263.

 

[19]          Aldair Lando & Eliane Barros, Os alemães no Rio Grande do Sul,RS: Imigração e Colonização, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1980, p. 19.

 

[20]          Emilio Franzina, A grande emigração: O êxodo dos italianos do Vêneto para o Brasil, Campinas, Editora da Unicamp, 2006, p. 264.

 

[21]          M.T. Petrone, Política Imigratória, cit., pp. 102-103.

 

[22]          A. Lomonaco, Al Brasile, cit., pp. 425-431.

 

[23]          Camilla Cattarulla, Alla “riscoperta” del nuovo mondo – 1, “Biblioteche Oggi”, 4-5 (1992), p. 442.

 

[24]          Chi è? Dizionario degli italiani d’oggi, Roma, Formiggini, 1907, sub vocem.

 

[25]          Camilla Cattarulla, Alla “riscoperta” del nuovo mondo – 2, cit., p. 546

 

[26]          Ibid., pp. 555-556.